quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Faúlhas de amor


      A aurora desponta com prenuncio reptante na manhã de Açucena. Ela retorna a mansão onde viveu sua infância, cresceu, passou momentos de volúpia e desalento. Ao presenciar o cenário de abandono, mergulha no deserto de suas lembranças. Na tentativa de resgatar páginas de sua história, escrita em cada recanto daquelas paredes. Cata no fundo da alma recordações que possam abrir o livro de sua existência, e dar-lhe a oportunidade de superar conflitos psíquicos. Em nome de um porvir que venha vencer a angustia, medos e transtornos que tanto afugenta sua felicidade.
       Adentra a sala e passa a mão sobre os moveis empoeirados. Junto aquele pó, nesgas tétricas de um passado e fagulhas de um amor viril.  Alguns passos à frente... comove-se ao observar porta-retratos de seus ancestrais, e um piano desafinado. Nesse instante, recorda do tempo em que sua avó reunia a família para belíssimas apresentações. Tocava Barry Douglas como poucos. E, a musicalidade daquele pianista irlandês, interpretado por sua avó com tamanha suavidade, proporcionava-lhe uma sensação de paz e aconchego. As notas musicais fluíam com tanta harmonia que a fazia suspirar de desejos, atiçando a quimera de viver uma sublime paixão.
       Senta-se, remove a toalha branca sobre o piano, que apesar do tempo conserva sua cor de marfim, e ensaia algumas notas. Retoma as lembranças. Recorda que as exibições de sua avó findavam constantemente com o austríaco Alfred Brendel, em meio a aplausos, cumprimentos e sorrisos. O sentimento de que está abrindo o alfarrábio de seu ser e folheando cada página de sua vida, impregna-se na alma.
       Caminha até o jardim e depara-se com folhagens... Das rosas, orquídeas, antúrios, cravos e gérberas, restam apenas os galhos. Percebe ao longe, que uma flor de açucena, apesar de castigada pelos maus tratos ainda resiste. Seu avô plantara aquela herbácea em sua homenagem. A flor que leva seu nome não sedia as adversidades do tempo. Essa constatação a faz refletir sobre seus fantasmas, pesadelos e descontentamento. Sua luta para superar o vazio causado pelo óbito de seu grande amor, em um acidente aéreo. Era véspera do casamento... Todavia, os desígnios inexplicáveis que regem as forças do acaso, limitaram um curto tempo para os dois. Um convívio efêmero, diante da perspectiva de compartilhar uma vida por inteiro. Entretanto, um amor que rompeu as barreiras do tempo rumo ao infinito. E, aquele largado palacete, herança passada a cada nova geração, foi o refugio de seus últimos momentos.
       A noite chega de forma encantadora, apesar do frio intenso pela aproximação do inverno. Açucena recolhe-se a seu aposento após um exaustivo dia de recordações e sentimentos de perda. Da varanda de seu quarto observa uma estrela resplandecendo no céu. Resistindo ao nevoeiro que teima em ofuscar seu brilho.
       A moça de olhar sereno conclui que as provações existem para serem superadas. Que precisa enfrentar a realidade sem nunca desistir de sonhar. Já que os sonhos são engrenagens que movem a esperança de um novo horizonte. É com esse desejo que ela vai dormir! Com a certeza de que no vindouro amanhecer o sol se fará presente. Embora nuvens carregadas teimem em persistir, a luz prevalecerá. E a vida segue seu curso no porvir de Açucena...

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